Dialética da mudança
As certezas nos dão tranquilidade; pô-las em questão equivale a tirar o chão de sob nossos pés
Certamente porque não é fácil compreender certas questões, as pessoas
tendem a aceitar algumas afirmações como verdades indiscutíveis e até
mesmo a irritar-se quando alguém insiste em discuti-las. É natural que
isso aconteça, quando mais não seja porque as certezas nos dão segurança
e tranquilidade. Pô-las em questão equivale a tirar o chão de sob
nossos pés.
Não necessito dizer que, para mim, não há verdades
indiscutíveis, embora acredite em determinados valores e princípios que
me parecem consistentes. De fato, é muito difícil, senão impossível,
viver sem nenhuma certeza, sem valor algum.
No passado
distante, quando os valores religiosos se impunham à quase totalidade
das pessoas, poucos eram os que os questionavam, mesmo porque,
dependendo da ocasião, pagavam com a vida seu inconformismo.
Com o desenvolvimento do pensamento objetivo e da ciência, aquelas
certezas inquestionáveis passaram a segundo plano, dando lugar a um novo
modo de lidar com as certezas e os valores.
Questioná-los,
reavaliá-los, negá-los, propor mudanças às vezes radicais tornou-se
frequente e inevitável, dando-se início a uma nova época da sociedade
humana. Introduziu-se o conceito não só de evolução como o de revolução.
Naturalmente, essas mudanças não se deram do dia para a noite, nem
tampouco se impuseram à maioria da sociedade. O que ocorreu de fato foi
um processo difícil e conflituado em que, pouco a pouco, a visão
inovadora veio ganhando terreno e, mais do que isso, conquistando
posições estratégicas, o que tornou possível influir na formação de
novas gerações, menos resistentes a visões questionadoras.
A
certa altura desse processo, os defensores das mudanças acreditavam-se
senhores de novas verdades, mais consistentes porque eram fundadas no
conhecimento objetivo das leis que governam o mundo material e social.
Mas esse conhecimento era ainda precário e limitado. Basta dizer que,
até começos do século 20, ignorava-se a existência de microrganismos
-como vírus e bactérias-, o que inviabilizava tratar doenças como a
tuberculose.
Costumo dizer que o poeta Augusto dos Anjos foi
assassinado pelo tratamento médico de uma pneumonia: submeteram-no a
sangrias e lavagens intestinais, debilitando-o mais, ou seja,
anularam-lhe as defesas naturais e o desidrataram.
A descoberta
dos vírus e bactérias como causas de muitas e graves enfermidades
possibilitou a produção dos antibióticos, o que representou um enorme
avanço na cura desse tipo de doenças.
Igualmente significativas
foram as mudanças nos terrenos econômico e político, resultantes da
crítica ao capitalismo e da luta dos trabalhadores em defesa de seus
direitos. O comunismo se impôs como uma alternativa à democracia
burguesa e influi até hoje na visão ideológica de parte considerável da
sociedade contemporânea.
Todos esses fatos -que são apenas uns
poucos exemplos do que tem ocorrido- tornam indiscutível a tese de que a
mudança é inerente à realidade tanto material quanto espiritual, e que,
portanto, o conceito de imutabilidade é destituído de fundamento.
Ocorre, porém, que essa certeza pode induzir a outros erros: o de achar
que quem defende determinados valores estabelecidos, em contraposição a
outros considerados inovadores, está indiscutivelmente errado.
Em outras palavras, bastaria apresentar-se como inovador para estar
certo. Será isso verdade? Os fatos demonstram que tanto pode ser como
não.
Mas também pode estar errado quem defende os valores
consagrados e aceitos. Só que, em muitos casos, não há alternativa senão
defendê-los. E sabem por quê? Pela simples razão de que toda sociedade
é, por definição, conservadora, uma vez que, sem princípios e valores
estabelecidos, seria impossível o convívio social. Uma comunidade cujos
princípios e normas mudassem a cada dia seria caótica e, por isso mesmo,
inviável.
Por outro lado, como a vida muda e a mudança é
inerente à existência, impedir a mudança é impossível. Daí resulta que a
sociedade termina por aceitar as mudanças, mas apenas aquelas que de
algum modo atendem a suas necessidades e a fazem avançar.
Ferreira Gullar
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